quarta-feira, 8 de junho de 2011

Um acontecimento pessoal, porém múltiplo - Guga Dorea

Eram 12:30 da tarde. Algo de novo estava prestes a acontecer em minha existência. O primeiro filho. Sensações inéditas percorriam o meu corpo naquele instante quando, de repente, experimentei o inesperado, que se instalou em seu organismo - fortemente marcado por cargas estigmatizadas -como se fosse um pontiagudo aguilhão.
As horas já haviam se passado. No momento mágico do nascimento, quando aquela nova vida já fazia parte de minha subjetividade, a enfermeira se postou em minha frente, com uma fisionomia de desalento e de quase perplexidade. Thiago estava em seus braços quando ela disse: "olhe a testa de seu filho". Sem compreender o porque, olhei e, em função da requisição da própria enfermeira, fui levado a confirmar que realmente aquele não compreensível olhar havia se concretizado.
Logo em seguida, a própria enfermeira apontou o corredor ao lado da sala de parto e me chamou para informar, da pior maneira possível, que meu filho poderia ter nascido com alguma "anomalia" genética, mas era para que eu voltasse ao lado da mãe e não transmitisse nenhuma fisionomia contrária àquele momento de habitual alegria e de incontável realização. Afinal, a sua barriga ainda estava aberta.
Nesse instante, e não poderia ter sido diferente, a minha vida parecia haver desabado, o que significou, na prática, a saída instantânea de um mundo aparentemente seguro e confortável, repleto de opiniões e convicções supostamente formadas, para um universo desesperador do caos, da incerteza, da fúria, do ódio, enfim, a minha impressão era de que toda uma existência havia se quebrado, sem chances de retorno a um mar calmo, a um porto seguro. É como se eu estivesse sendo sugado, exatamente naquele segundo, por um mar extremamente bravio, surgido do nada, que havia me lançado para outro mundo, preocupadamente intolerável e enigmático. Meu corpo não se reconhecia mais naquele "eu", que havia se transformado em um outro corpo, uma outra subjetividade, em suma, estava assustadoramente no limiar de um outro mundo em que meus projetos de futuro não caberiam mais.
"Consideremos um campo de experiência tomado como um mundo real, (...). Há, neste momento, um mundo calmo e repousante. Surge, de repente, um rosto assustado que olha alguma coisa fora do campo. Outrem não aparece aqui como um sujeito, nem como um objeto, mas, o que é muito diferente, como um mundo possível, como a possibilidade de um mundo assustador. Esse mundo possível não é real, ou não o é ainda, e todavia não deixa de existir".
É o mesmo que estar passando de um modo de ser e de existir a outro totalmente diferente. Como disseram Deleuze e Guattari, "outrem faz o mundo passar, e o ‘eu’ nada designa senão um mundo passado (‘eu estava tranqüilo...’)", quando subitamente algo me carregou para outro mundo aterrorizante, pelo menos o era naquele exato instante, o que veio a abalar profundamente todo uma forma de conceber a vida, com o que até então era concebido como meu território existencial.
Segundo a ótica apresentada por Deleuze e Guattari, nossa existência, aparentemente individualizada e única, vive cotidianamente em um processo intenso e ininterrupto de desterritorializações e reterritorializações. Não podemos viver sem estarmos inseridos na órbita de algum território existencial. No entanto, ele jamais é fixo ou inalterável, sendo concebido por eles sempre como ponto de partida e não de chegada.
Queiramos ou não, nossos territórios estão cotidianamente sendo transformados e re-transformados, mesmo que inconscientemente, por acontecimentos externos a nós. É como se um estranho em nós sempre estivesse à espreita, pronto a atravessar e a metamorfosear maneiras repetitivas e habituais de vivenciar a realidade aparentemente única de cada indivíduo, como se nada pudesse alterá-la, modificar a direção, já decodificada pelo lançador, de sua flecha rumo ao futuro.
Foi exatamente o que aconteceu naquele preciso segundo existencial. "Meu" território existencial, ao se deparar com uma forte carga de sensação e de percepção, entrou em um processo fulminante, desejando eu, ou não, de desterritorialização que, segundo Deleuze e Guattari, pode ser positiva ou negativa8, não existindo um efeito específico e determinado aprioristicamente para cada causa, ou seja, um acontecimento exterior, em horas idênticas e no mesmo espaço geográfico, pode levar duas pessoas a caminhos totalmente distintos e múltiplos.
A partir de uma realidade como essa, é inevitável que venha a seguinte indagação: o que tende a ocorrer com um pai ou mãe ao receber a notícia que seu filho corre sérios riscos de não ser uma criança regularmente concebia como "normal", sendo possivelmente portadora de uma "doença" totalmente desconhecida para a família ou recheada de pré-conceitos? Quais são as chances dessa pessoa aceitar que seu território existencial acabou de entrar inevitavelmente, reconheça ela ou não, em uma irresistível dinâmica desterritorializante? E finalmente, será esse fluxo negativo ou positivo?
Retornando ao nosso caso específico, é bastante comum que essa inevitável desterritorialização beire ou caia na armadilha do que Deleuze e Guattari chamaram de linha de morte ou de destruição. Diante disso, muitos pais se separam; outros simplesmente abandonam ou entregam a criança a uma instituição qualquer, acreditando no fantasma de que seu filho é "incapaz e não vai ser hábil ou esperto o suficiente para se proteger do mundo externo".
Outro efeito possível é a superproteção, no qual instala-se um pensar por nós, ou seja, os pais se auto-proclamam a voz e a consciência do filho em conseqüência da crença de que a criança jamais estará apta a pensar e agir por si mesma. Ambos os comportamentos são amplamente destrutivos, para não dizer mortíferos, tanto para os pais como para o filho, pois significa brecar de uma forma apriorística qualquer possibilidade de vida e de criação. É o mesmo que dizer: "não adianta investir em seu desenvolvimento, pois a criança é limitada e não vai conseguir aprender ou apreender nada".

Outra saída, no entanto, é não se deixar embarcar nesse pessimismo mortífero e determinista, partindo para uma trilha mais instigante e desafiadora: o de investir positivamente na criança, acreditando em sua autonomia diante de um mundo externo que, muitas vezes, aposta na destruição e no aniquilamento. Trata-se de garimpar múltiplas aberturas para que a criança possa exprimir seus desejos e necessidades, tanto no campo social como em sua mais pura singularidade.

Fonte Saci

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